domingo, 7 de outubro de 2012

guia-me, Carlota.

guia-me, Carlota, peço eu. 
com um sorriso nos lábios e uma emoção díficil de esconder, Carlota, aventura-se comigo, por uma cidade cheia de mudanças que não gosta. a tendência para falar  no antigamente aloja-se nos ossos de tal maneira, que se torna impossível observar as ruas sem o novo olhar que elas precisam. 
todos os dias, na nossa cidade ou vila, passamos por mulheres como a Carlota e não as vemos. sabemos que estão lá, que apontam para a nossa passada apressada de quem tem sempre mil coisas para fazer sem poder olhar para o que as rodeia, mas preferimos olhar para tudo o resto. não cedemos algum do nosso tempo para ouvir. são mulheres que conhecem os recantos todos da sua cidade, que nasceram nela, que sobrevivem nela, que não se cansam dela, e que acumulam cicatrizes de uma vida dura.
hoje, a Carlota é a protagonista do nosso encontro. confio nela para me guiar pela sua cidade. com uma cicatriz visível no pé, não abranda o passo porque se sente feliz por partilhar. ouço-a a falar da mãe, nunca do pai, da falta que ela lhe faz desde que partiu quando ela tinha dez anos. toco-lhe nas costas e sinto as lágrimas todas acumuladas, as que teve que esconder para sobreviver. "se a minha mãe ainda estivesse viva, nada disto me tinha acontecido", e eu sei que esta frase podia indicar o início ou o fim da sua história porque nela reside a esperança de um salvamento que nunca chegou a ser concretizado.
 
os seis filhos porque "meia dúzia é sempre melhor" são o retrato de um casamento que Carlota teve a coragem de pôr um ponto final. 28 anos a aguentar maus tratos. fico sem palavras, sem saber o que dizer porque qualquer capa de super herói que tentemos vestir torna-se singularmente ridícula face à coragem desta mulher. 
não sei o nome das ruas, interessa-me mais o que ela conta acerca delas. passamos por um túnel que ela prefere à vista da ribeira. "não tem interesse nenhum, mas eu gosto de passar aqui. ver e ser vista, entende?", sim, entendo, mas não entendo. há um barulho ensurdecedor dos carros a buzinar, uma poluição que se entranha na pele, uma espécie de demência momentânea. olho para ela e está a sorrir. às vezes sabe bem não nos ouvirmos, deixar baixar o som do nosso ruído interior.

vamos até à ribeira e fico encantada com a felicidade de a ver regressar à época em que com cinco/seis anos, vinha para o rio lavar a roupa e, para poder banhar-se nas águas, fingia que a roupa se afastava e tinha que nadar até ela. fala das peixeiras que ali vendiam e que foram trocadas por vendedores de artesanato, dos "tascos" que foram substituídos por esplanadas para turistas, das mercearias que vendiam arroz, açúcar às gramas. "agora é tudo em pacotes". e, para mim, isso diz tudo. 
encontramos a Joaquina a vender tremoços que não resisto a comprar, a Diana, amiga de longa data, a quem dou um abraço gigantesco, e seguimos de dedo em riste para o prédio onde ela nasceu. eram 20, mas só 7 ainda estão vivos. não há pausas para pensar muito, seguimos a falar das casas de penhores que também recebiam a "roupa de domingo" à segunda feira e depois voltavam a comprá-la à sexta para a voltar a usar no domingo. 
gosto de a ouvir, gosto do ritmo dela, de ser guiada por ela. pergunta-me se estou a gostar porque isso é muito importante. sim, muito.
a ana madureira tem este dom que não é muito comum, o de olhar atentamente para aquilo que a rodeia e levar os outros a olhar também. mas, principalmente de tornar estas pessoas em protagonistas das suas próprias histórias, com o orgulho daquilo que já viveram. poder partilhar de um bocadinho destas vidas, é um privilégio.
deixarmo-nos guiar pelos outros é um acto de generosidade, de baixar as nossas defesas e entrar por territórios desconhecidos. sentirmos a pele do outro, e as camadas que se escondem à espera de ser descobertas, é ser-se humano, conhecedor de uma geografia fundamental para o nosso crescimento. 
agora, fecha os olhos e deixa-te guiar.

cf

Para saber mais sobre este projecto maravilhoso da ana madureira, visitem:
guia-me!

1 comentário:

  1. Obrigada Cátia por nos dares a conhecer a tua visita guiada, e incluíres assim mais uma nessa viagem.
    Ana

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